quinta-feira, 20 de março de 2014

SNUC - O Espírito da Lei.



O Espírito da Lei nº 9.985/2000 e o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da natureza.
João Flávio Costa dos Santos.
            Organizamos esta apresentação com o objetivo de elucidar as entrelinhas do SNUC, o que chamaremos aqui de “Espírito da Lei”. Para alcançar este objetivo buscamos o histórico de instrumentos legais que trataram de áreas protegidas no Brasil com enfoque à Constituição Federal de 1988 que dedicou um capítulo inteiro às questões ambientais. Por seguinte, passamos a descrever o trâmite do Projeto de Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, enfocando as partes interessadas e os conflitos desenvolvidos. Com esta base histórica, propomos ao final da apresentação uma interpretação do Espírito da Lei.
A denominação Unidades de Conservação é uma peculiaridade brasileira; internacionalmente, a equivalência do termo é áreas protegidas. Levantamos alguns pontos anteriores à instauração da SNUC que utilizaram de instrumentos legais para tratar de áreas protegidas no Brasil e estes resultados são apresentados na Tabela 01.
26 de julho 1891
Decreto 8.843
Reserva florestal (Acre), com 2,8 milhões de hectares.
28 de dezembro de 1921
Decreto 4.421
SFB – Florestas Protetoras.
23 de janeiro de 1934
Decreto 23.793
Parques nacionais, estaduais e municipais.
13 de fevereiro de 1948
Decreto 3
Parque nacional reserva nacional, monumento natural e reserva de região virgem.
15 de Setembro de 1965
Lei 4.771
Parques, reservas biológicas e florestas nacionais, estaduais e municipais.
27 de abril de 1981
Lei 6.902
Estações ecológicas e as áreas de proteção ambiental.
31 de janeiro de 1984
Decreto 89.336
Reservas ecológicas e as áreas de relevante interesse ecológico.
1988
Constituição Federal
Artigo 225.
30 de janeiro de 1990
Decreto 98.897
Reservas extrativistas.
5 de junho de 1996
Decreto 1.992
Reserva particular do patrimônio natural.
18 de julho de 2000
Lei  9.985
SNUC
Tabela 01. Instrumentos legais para Áreas Protegidas no Brasil.
As áreas protegidas pioneiras do Brasil tinham um apelo cênico, ou seja, o principal objetivo era preservar áreas de reconhecida beleza para usufruto da população. A questão da conservação teve poucos exemplos, mas quando aconteceu foi para garantir a disponibilidade de recursos destinados a uma massa urbana. Nessa ótica pode ser citado o exemplo do reflorestamento da Floresta da Tijuca entre os anos de 1861-1889, com o objetivo de garantir o abastecimento de água da população do Rio de Janeiro.
A história das áreas protegidas a título ambiental no Brasil apresenta também iniciativas frustradas. Em 1891, por exemplo, o Decreto Federal nº 8.843 criou uma enorme reserva florestal, no que é atualmente o estado do Acre, com 2,8 milhoes de hectares. No entanto, não se conhece qualquer iniciativa no sentido de sua implementação.
Tomamos contato com o decreto legislativo nº 4.421, de 28 de Dezembro de 1921. Este decreto criou o Serviço Florestal Brasileiro e no Art. 3º  incumbe ao órgão:
I. Promover e auxiliar a conservação, criação e guarda das florestas protetoras, isto é, das que servem para:

      § 1.º Beneficiar a higiene e a saúde publica.

      § 2.º Garantir a pureza e abundância dos mananciais aproveitáveis á alimentação.

      § 3.º Equilibrar o regime das águas correntes que se destinam não só ás irrigações das terras agrícolas como também ás que servem de vias de transporte e se prestam ao aproveitamento de energia.

      § 4.º Evitar os efeitos danosos dos agentes atmosféricos; impedir a destruição produzida, pelos ventos; obstar a deslocação das areias movediças como também os esbarrocamentos, as erosões violentas, quer pelos rios, quer pelo mar.

      § 5º Auxiliar a defesa das fronteiras.
Continuando a busca por instrumentos legais que legislam áreas protegidas, chegamos ao primeiro Código Florestal, o decreto nº 23.793 de 23 de Janeiro de 1934. Esta é a primeira referência legal brasileira a parques nacionais, estaduais e municipais. Ele classificava as florestas nativas (e não nativas) em quatro tipos: “protetoras” e “remanescentes” (ambas sob regime de preservação permanente), e “modelo” e “produtivas”(ambas passíveis de exploração comercial).
   Art. 9º Os parques nacionais, estaduais ou municipais, constituem monumentos públicos naturais, que perpetuam em sua composição florística primitiva, trechos do país, que, por circunstâncias peculiares, o merecem.
       § 1º É rigorosamente proibido o exercício de qualquer espécie de atividade contra a flora e a fauna dos parques.
   Art. 10. Compete ao Ministério da Agricultura classificar, para os efeitos deste código, as varias regiões e as florestas protetoras e remanescentes, localizar os parques nacionais, e organizar florestas modelo, procedendo para tais fins, ao reconhecimento de toda a área florestal do país.
Em 1948, pelo Decreto Legislativo n° 3 de 13 de fevereiro de 1948, as categorias de parque nacional, reserva nacional, monumento natural e reserva de região virgem foram criadas atendendo à Convenção sobre a proteção da Flora, da Fauna e das Belezas Cênicas Naturais dos Países da América assinada pelo Brasil, a 27 de dezembro de 1940.
O perambulo do decreto menciona a preocupação dos governos americanos em “proteger e conservar no seu ambiente natural exemplares de todas as espécies e gêneros da flora e fauna indígena” para evitar extinções, além de interesse em proteger e conservar as paisagens de grande beleza.

Artigo I
Definição dos termos e das expressões empregadas nesta Convenção.
1 - Entender-se-á por Parques Nacionais:
As regiões estabelecidas para a proteção e conservação das belezas cênicas naturais e da flora e fauna de importância nacional das quais o público pode aproveitar-se melhor ao serem postos sob a superintendência oficial.

2 - Entender-se-á por Reservas Nacionais:
As regiões estabelecidas para a conservação e utilização, sob a vigilância oficial, das riquezas naturais, nas quais se protegerá a flora e a fauna tanto quanto compatível com os fins para os quais estas reservas são criadas.

3 - Entender-se-á por Monumentos Naturais:
As regiões, os objetos, ou as espécies vivas de animais ou plantas, de interesse estético ou valor histórico ou científico, aos quais é dada proteção absoluta, com o fim de conservar um objeto específico ou uma espécie determinada de flora ou fauna, declarando uma região, um objeto ou uma espécie isolada, monumento natural inviolável, exceto para a realização de investigações científicas devidamente autorizadas ou inspeções oficiais.

4 - Entender-se-á por Reservas de Regiões Virgens:
Uma região administrada pelos poderes públicos, onde existem condições primitivas naturais de flora, fauna, habitação e transportes, com ausência de caminhos para o tráfico de veículos e onde é proibida toda exploração comercial.

Em 15 de Setembro de 1965 a Lei Nº 4.771 (também conhecida por novo Código Florestal) ampliou os conceitos de parques, reservas biológicas e florestas nacionais, estaduais e municipais, dando-lhes finalidades específicas, incluindo-se ainda a possibilidade da transformação de florestas particulares em unidades particulares de preservação permanente. Esta lei trouxe como novidade principal a criação de UCs de uso indireto (parques nacionais, estaduais, municipais e reservas biológicas), que não permitiam o uso dos recursos naturais, e as de uso direto (florestas nacionais e parques de caça), que permitiam a exploração direta dos recursos naturais.
        Art. 1° As florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade, com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem.
        II - área de preservação permanente: área protegida nos termos dos arts. 2o e 3o desta Lei, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas; (Incluído pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001)
        III - Reserva Legal: área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas; (Incluído pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001)
        IV - utilidade pública: (Incluído pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001)
        V - interesse social: (Incluído pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001)
        VI - Amazônia Legal: os Estados do Acre, Pará, Amazonas, Roraima, Rondônia, Amapá e Mato Grosso e as regiões situadas ao norte do paralelo 13o S, dos Estados de Tocantins e Goiás, e ao oeste do meridiano de 44o W, do Estado do Maranhão. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001)
        § 1° A supressão total ou parcial de florestas de preservação permanente só será admitida com prévia autorização do Poder Executivo Federal, quando for necessária à execução de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pública ou interesse social.
        § 2º As florestas que integram o Patrimônio Indígena ficam sujeitas ao regime de preservação permanente (letra g) pelo só efeito desta Lei.
        Art. 3o-A.  A exploração dos recursos florestais em terras indígenas somente poderá ser realizada pelas comunidades indígenas em regime de manejo florestal sustentável, para atender a sua subsistência, respeitados os arts. 2o e 3o deste Código. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001)
               Art. 4o  A supressão de vegetação em área de preservação permanente somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública ou de interesse social, devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001)
Novas categorias de UCs foram instituídas pela Lei no 6.902, de 27 de abril de 1981: as estações ecológicas e as áreas de proteção ambiental. O Decreto no 89.336, de 31 de janeiro de 1984, criou duas categorias a mais: as reservas ecológicas e as áreas de relevante interesse ecológico. Estas últimas foram reconhecidas como UCs pela Resolução no 12, de 14 de dezembro de 1987, do Conselho Nacional do Meio Ambiente(Conama). As reservas extrativistas surgiram em 1987, com base na Portaria 627 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), mas só foram reconhecidas como UCs por intermédio do Decreto 98.897, de 30 de janeiro de 1990. Após várias iniciativas similares, porém inconclusivas, do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), foi instituída, pelo Decreto 1.992, de 5 de junho de 1996, a categoria reserva particular do patrimônio natural, modalidade de UC criada em terras particulares, por iniciativa dos seus. Havia, ainda, outras UCs com denominações e finalidades diversas, criadas nas esferas de governo federal, estadual e municipal.

Assim, o Brasil chegou a década de 1990 com uma pluralidade de categorias de áreas naturais protegidas a título ambiental, ao mesmo tempo em que se firmava em escala internacional um consenso em torno da importância da proteção da biodiversidade e das paisagens nativas. Os diferentes tipos de UCs nasceram a partir de vários fatores, inclusive a sintonia de cientistas e administradores com as mudanças no panorama mundial da conservação ambiental, a ampliação do interesse social na questão, pressões internacionais e a concorrência entre organismos gestores e as suas diferentes políticas. Faltavam, no entanto, leis e diretrizes de gerenciamento que garantissem eficácia a essa variedade de categorias. A situação exigia um esforço de sistematização.
A Constituição Federal de 1988 assegura a todos, em seu artigo sobre meio ambiente (transcrito a seguir) um meio ambiente ecologicamente equilibrado e prevê que cabe ao Poder Público o dever de defendê-lo e preservá-lo:
Constituição Federal - CF - 1988
Título VIII
Da Ordem Social
Capítulo VI
Do Meio Ambiente

Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
Conforme previsto no Inciso III do 1º parágrafo, um dos instrumentos que a Constituição aponta para o cumprimento desse dever é o estabelecimento de espaços territoriais protegidos por parte do poder público. A fim de atender à constituição foi elaborado o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) cujo processo de elaboração e negociação perdurou por cerca de 10 anos com elevadas doses de polêmicas entre as partes interessadas.
A origem do SNUC remete-se ao Instituto de Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), ainda em 1988, quando o órgão incumbiu a ONG Fundação Pró-Natureza (FUNATRA) de elaborar um anteprojeto de lei instituindo um sistema de unidades de conservação. 
A Funatra encontrou dificuldades para definir categorias de manejo, ao passo que deveria excluir categorias semelhantes e crias novas onde se viam brechas na legislação. No ano seguinte, o anteprojeto foi entregue ao CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente) com aprovação em maio de 1992. Após, foi encaminhado à Casa Civil da Presidência da República, onde foram suprimidos os dispositivos que criminalizavam as agressões às UCs, substituídos por sanções administrativas.
O deputado Federal Fábio Feldmann, relator do projeto de lei do SNUC entre 1992 e 1995, apresentou um substitutivo ao projeto, introduzindo modificações relevantes como a questão da ocupação humana em áreas de unidades de conservação. 
Daí surge o debate inicial entre duas linhas principais: uma defensora da existência de áreas resguardadas da interferência humana, em prol do conhecimento e da operação dos ecossistemas pelas futuras gerações; e outra defensora da presença das populações tradicionais, mais tolerante à presença humana em espaços sob regime de proteção.
Em 1995 a relatoria passou ao deputado federal Fernando Gabeira. Um novo substitutivo foi apresentado por este, aprofundando as divergências entre os ambientalistas e alimentando, ainda mais, a polêmica.
Um dos fortes argumentos contrários à presença humana destaca que as UCs de uso sustentável são de futuro incerto do ponto de vista da manutenção da biodiversidade e que determinadas espécies, como os megaherbívoros e os carnívoros de topo de cadeia, seriam especialmente suscetíveis à presença e aos usos humanos. Por outro lado, um forte argumento da posição mais permeável à presença humana em UCs é o de que seria social e politicamente injusto retirar as populações ocupantes de tais espaços porque, inclusive, elas teriam colaborado para a conservação e a manutenção da biodiversidade.
Após inúmeras reuniões, audiências públicas, versões e modificações, o projeto foi aprovado no Congresso em 2000, mas teve ainda alguns dispositivos vetados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, como por exemplo, a definição de populações tradicionais.
O resultado (Lei nº 9.985/2000) – uma tentativa de conciliação entre visões muito distintas – apesar de não agradar inteiramente a nenhuma das partes envolvidas na polêmica, significou um avanço importante na construção de um sistema efetivo de áreas protegidas no país.

O espírito da lei, interpretado pela história de sua construção, está no caráter complementar entre as diferentes categorias de UCs.  O SNUC deu funções específicas para cada categoria de área protegida, mas integrou todas em um Sistema que representa a interseção  dos interesses defendidos por  diferentes partes.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário